Coisas que não vemos mas sabemos existir. Desejos e histórias que nascem e morrem num piscar de olhos. Palavras de um cérebro que sente e um coração que pensa. Eu nunca vi uma estrela cadente e mesmo assim procuro por ela todas as noites.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A carta

Era uma dessas tardes de fim de inverno, exceto pelo fato de que nem parecia inverno. Olhou pela janela enquanto o sol aquecia sua pele. Respirou, mas o ar era seco demais. E precisando de umidade, seus olhos degringolaram em gotas emergenciais.
Tocou o interfone: “O correio deixou algo pra senhora, dona Alice”. Desceu pelo elevador intrigada, carregando um coração cheio de dúvidas. Estava há dias esperando pra falar o que sentia, mas algo sempre se imprimia em seus lábios: I feel, Yo siento. Nunca no seu idioma, não, aquilo já seria óbvio demais; tinha essa mania de negar pra si em uma língua diferente, como se houvesse uma estrangeira dentro daquele coração. Uma hermana que tinha um ponto de interrogação bem no meio da garganta. Uma entrega especial, urgente. Era uma caixa pequena e branca.
Dentro da caixa havia apenas um espelho e uma carta. Alice de olhos degringolantes, com dificuldade, começou a ler:
“Pois é, pasme. Resolvi soltar meu verbo. Em português. Há dias tenho convivido com esse corpo estranho que você chama dúvida. O coração não vem com manual de instruções menina; a paixão muito menos. Como uma criança, ela é toda sentir. Ela chora, ela sente dor e não sabe o que é. E ela precisa de pele, de empatia. Pra crescer e virar alguém melhor, alguém que você pode contar e confiar.
Eu não sei viver com migalhas de amor, não sou passarinho, ouviu bem? Eu sou João e Maria, gulosos atrás da casa feita de doces, mesmo que pra isso, tenha que enfrentar uma bruxa malvada.
Não existe compreensão na paixão, Alice. É uma noite de libertinagem, de querer, é o egoísmo na sua forma mais irracional. Você quer pra si, só pra si. Paixão a gente não divide, criança. Sem essa de duas pessoas. Ela pode até acontecer entre dois corpos, mas a celebração é num único ser.
Amor é diferente? Sei lá, Clarice achava que “poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais”. Eu adoro a Clarice, mas não concordo. Amor é outra coisa. Amor é de cada um, mas é inteiro entende? A cola é a paixão.
Tá bom, entendi. Por que eu não te falei antes? Sei lá. Talvez eu precisasse de uma coisa só minha. Meu segredo é esse, eu preciso de uma coisa que seja só do meu conhecimento sabe? Porque apaixonada, a gente fica cristalina demais. Too clear my dear.
Olha, não chora assim. Eu só quero ajudar, porque eu sofro também nessa história. Alice, é assim: a paixão vem como uma onda gigante. Depende de você surfar e curtir o passeio. Sempre há a possibilidade de você cair, como você também leva um caldo se perder o controle na hora de subir. Mas a forma de encarar a onda depende de você.
Minha experiência como surfista diz que se a gente souber aproveitar a onda, dá até pra chegar na praia suavemente. Isso eu chamo de amor. O que não impede você de pegar uns jacarés de vez em quando, em dupla.
Sei que a razão fica no seu pé. Isso é barra, nem imagino o que você está passando com essa história de tradução simultânea. Eu tenho meu idioma natural, que é às vezes (como você já percebeu), muito desbocado. Peço desculpas pelo “vômito”. Mas como você bem sabe, a conselho de Caio F. a gente deve moldar essa gosma, pra ver o que sai dela. Me agradaria muito um girassol. Ou lírios, adoraria ver lírios teus.
Acho que eu vou me despedir, você ainda tem muita coisa pra discutir com a parte de lá. Diga a minha querida “razón” que mandei um beijo. A gente nunca se encontra mas uma não vive sem a outra.
Fique bem, feliz, sempre.
Sempre seu,
Coração
PS: Você precisa se exercitar.”

Alice pegou o espelho; entrou fundo naqueles olhos úmidos e vermelhos. Era um dia muito quente e nem parecia mas ainda era inverno. Pegou sua prancha e foi de encontro ao mar. Lá fora, setembro se anunciava, a primavera estava chegando.