Coisas que não vemos mas sabemos existir. Desejos e histórias que nascem e morrem num piscar de olhos. Palavras de um cérebro que sente e um coração que pensa. Eu nunca vi uma estrela cadente e mesmo assim procuro por ela todas as noites.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A espera do Ir-remediável

"Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver." Caio F.
Meu avô se chama Carlos. Foi o melhor professor que tive na vida. Provavelmente o homem mais educado que eu conheci. A vida dele se resumiu em ensinar. Meu avô tem Mal de Parkinson. E vive com medo de morrer.
Durante toda a vida, nunca tive grandes problemas com a morte. Creio que em parte isso aconteceu porque mesmo não tendo dimensão próxima e exata, eu era rodeada por ela. Morte todos os dias no jornal, na tevê, no mundo todo. E de repente a iminência da morte do meu avô me deixou preocupada. Quando se vive esperando a tal criatura vestida de preto carregando uma foice, o terror toma conta de cada célula do corpo. A morte dá medo em quem vive, e só.
Quando ela vem lenta e sorrateira, o impacto é ainda pior. A deterioração do corpo ao longo da vida é até aceitável. A deterioração da mente é mais dolorosa, irracional. Porque a morte é falta de vida; mas a falta de memória também é. Não só a incapacidade de se fazer algo para evitar um destino fatal, mas o desespero de não conseguir acessar informações que estão ali, em algum lugar do seu cérebro. Como por exemplo, procurar um bilhete em 78 anos de papéis que se espalham nas gavetas da memória. Primeiro faltam as lembranças, depois as palavras. E lentamente vão faltando motivos para que haja comunicação com o mundo externo, e a espera pela morte se torna solitária e (se isso for possível) mais triste.
Não saberia viver sem minhas lembranças. Sem minhas palavras. Sem minha inspiração fujona que se esconde, mas sempre volta para trazer boas noticias. Não sei como viver num mundo sem meu avô. E muito menos saberia como viver no mundo tão misterioso e solitário daquele homem de cabelos brancos que passou a vida inteira ensinando e que hoje tem que aprender tudo de novo.
Caio Fernando Abreu chamou de “irremediável” algo melancólico e sem saída e de "ir-remediável" um trajeto que pode ser consertado. Será que é possível aprendermos a ver a morte sob esse aspecto? Com certeza alguém já ouviu a mãe ou a tia dizer que falar sobre esse assunto “chama” a coisa ruim. Talvez sejam lendas como essa que transformam a morte em assunto desagradável. Ninguém quer pensar que um dia não existirá mais como matéria no universo. Mas é por saber que pessoas como meu avô pensam nisso todos os dias que penso no quanto fechamos os olhos para a dor da espera.
Apesar de terem um fim inevitável, as doenças degenerativas têm um aspecto angustiante muito forte. Temos em nosso consciente que o tempo é irreversível, mas nada consta ali sobre a possibilidade de que uma enfermidade nos faz regredir, em uma verdadeira máquina do tempo reversa. Necessitar de cuidados de bebês com corpo de adulto. Os sintomas que acabam sendo causados por remédios, feitos para frear a evolução da doença, são como recuar do abismo da morte, em direção a um buraco um pouco mais raso, porém escuro.
Acompanhar o sofrimento daqueles que amamos, não é uma tarefa fácil. A sensação de incapacidade pode ser paralisadora, aterrorizante. Há aí uma confusão entre ter pena e ter piedade. Ninguém deseja ser alvo de pena de alguém. É o exercício de empatia que enriquece o ser humano, o colocar-se no lugar do outro, com a humildade do doente. Um ato que devíamos transformar em hábito.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O velório do que já foi

“Esperar um pouco menos, amar um pouco mais”. Quando li essa frase, muitas cores povoaram meu pensamento. Arthur Shopenhauer dizia que toda ausência gera um desejo. Dessa forma, sempre que atingimos um objetivo criamos um novo, pois a falta dele nos é insuportável. Onde começa o desejo e onde termina a satisfação?
O tema trouxe a necessidade de pensar nesse valor: o da ausência. Sempre sentimos falta de alguma coisa. Na mitologia grega, a mãe de Eros era a Penúria. Qual o sentido disso? Eros é a personificação do desejo e sua mãe, da falta de. Portanto a falta gera o desejo. Shopenhauer devia gostar de mitologia.
Sentimos em nós lacunas que uma vez foram preenchidas. Nostalgias. Espaços que foram ocupados e jazem sem dono, inférteis. Os estóicos sugeriram que devêssemos viver de forma que não fôssemos escravizados pela paixão. Que deveria se esperar menos, amar mais. Viver de acordo como a Natureza nos impõe, ou no português claro, o destino. Se desejarmos sempre aquilo que não temos, viveremos sempre num estado de infelicidade. Nesse caso, a paixão é infeliz.
Não sei até que ponto essa filosofia se aplica realmente. Digo na vida real, aquela vivida a cada minuto, inclusive este. Há em nós esses vazios que não se completam, mas que nos impulsionam a arder a chama, a realizar um desejo. Mesmo que seja um fogo temporário.
O ciclo vital nos empurra, invariavelmente, para frente. Nós é que insistimos em voltar nosso rosto e por vezes nosso coração para o que já passou. Estradas que ficam impressas nos pneus da memória.
A paixão não necessariamente escraviza. Ela é a expressão mais ardente de um desejo que não cabe dentro de um corpo, que precisa ser externa, aguda, gritante. Não existe sabedoria no desejo. Entendo o desejo como entendo o vazio. São lados de uma mesma moeda girando, girando, girando.
Não me conformo com a vida acontecendo dentro do círculo dos 99, onde a infelicidade da ausência da última moeda faz o menestrel esquecer as 99 que já tem. Se nos permitirmos entrar nesse ciclo, como o próprio nome já diz, não há evolução. E se tem uma coisa que tira do sério quem tem urgência em ser feliz, é vocação pra cavar buraco em volta dos próprios pés.
Cada um vai achar uma saída, uma resposta. Alguns acharão em Deus, outros acharão em uma relação, no Universo, no desconhecido, tanto faz. Transcender não tem receita, não tem atalho, muito menos definição. Você pode chafurdar na lama, correr até sentir que suas pernas sumiram, rodar até o mundo parecer um borrão. O que vai importar é como você vai reagir quando a chuva molhar seu rosto e encharcar sua alma. É ser capaz de receber o gosto, o cheiro e a sensação da água sobre a pele. E se tudo isso te fizer pensar que há uma comunhão entre você e o resto do mundo, por alguns segundos todos aqueles espaços e todas aquelas saudades são preenchidas por versões de você, que têm que coexistir num mesmo corpo, que anseia por novas maneiras de ser.
O desejo, a ausência. “Elle ne savait pas que l'Enfer, c'est l'absence”. Ela não sabia que o inferno é a ausência. I can’t get no satisfaction. Nós sempre vamos querer mais. Verlaine, Shopenhauer, Mick Jagger, e até Buda tinha questionamentos sobre o tema. Se a resposta não existir afinal, pelo menos teremos algo a buscar e, afinal, era esse o ponto principal desde o começo.